Ao contrário do
Novo Testamento (NT), no
Antigo Testamento (AT) o conceito do mal não existe de forma personificada e autônoma em relação a
Deus. Na visão
monista, característica do AT, a soberania absoluta de Deus não é ofuscada por nada. Deus é o autor de todas as coisas, sejam elas compreendidas como boas ou más pelo ser humano. No AT existem apenas quatro referências ao Diabo como sendo um ser
sobrenatural devido ao fato de que a figura de Satã é desnecessária, afinal, Javé é responsável pelo mal. A falta de um dualismo radical entre o bem e o mal explica-se pela exclusividade de
Javé. Nos três séculos anteriores à era cristã houve a predominância da tendência de considerar os demônios como seres predominantemente nocivos. O mal é conseqüência da desobediência do homem, logo, não há necessidade de Satã. o Antigo Testamento é permeado por uma visão monista, onde Deus é que garante a ordem cósmica e qualquer ser ou pessoa que pretenda atrapalhar esta ordem, recebe a devida retribuição por sua desobediência. Neste sentido, pode-se dizer que no Antigo Testamento o mal praticado pelo ser humano traz embutido em si o castigo. Assim sendo, seria correto afirmar que o Deus Javé é o originador de uma série de males em retribuição ao mal praticado pelo ser humano, todavia ele não é o causador do mal em um sentido
moral. Apesar da grande produção literária (conhecida como textos apócrifos), ocorrida no período compreendido entre o fim do AT e o início do NT, esta não foi incorporada ao
cânon cristão e, por isso, parece existir uma grande lacuna entre ambos os testamentos. Assim sendo, as mudanças em relação ao mal não foram percebidas de forma gradativa. Os textos
apócrifos, são exatamente aqueles que preenchem a lacuna acima citada, afinal, foram muito difundidos na época, inclusive, influenciando os discípulos de Jesus. Entre os séculos VI e IV a.C e IV e I a.C, períodos de hegemonia persa e grega respectivamente, tais culturas influenciaram profundamente o judaísmo e consequentemente o cristianismo. Nessa época, teria ocorrido uma ruptura na personalidade de Deus, o qual tornou-se exclusivamente um autor benigno, deixando de agir de forma maléfica. No que se refere à cultura hebraica, houve uma quebra, um deslocamento da visão monista para uma visão
dualista. Na concepção dualista, dos persas ou iranianos particularmente, havia um Deus benevolente e um malévolo sendo que o mal e o bem eram realidades diferentes de origens distintas. Em aproximadamente 600 a.C
Zaratustra lançou as bases da primeira religião totalmente dualista, revolucionando a história dos conceitos no Irã. Zaratustra afirmava que o mal originou-se de um princípio à parte do divino, sendo que ao deslocar-se do monismo para o dualismo, o
politeísmo ficava distante e o
monoteísmo aproximava-se. Os gregos foram influenciados pelo dualismo persa e quando em períodos mais recentes do AT, o dualismo tornou-se mais presente na fé israelense e por motivos evidentes, hesitavam atribuir a Javé a origem do mal, buscava-se um personagem para desempenhar dois papéis: evitar a atribuição do mal a Javé e, simultaneamente, confirmar o controle deste último sobre a história do universo. No campo da
filosofia da Grécia Clássica,
Platão é o pensador que mais influenciou o cristianismo. Para ele, o mundo das idéias é real, bom, perfeito. Se o mal consiste da falta de perfeição e o mundo fenomenal não reflete ao mundo das idéias de forma adequada, na medida em que isso ocorre, torna-se menos real, menos bom, logo, torna-se mais mal. Alguns autores se referem ao cristianismo como uma posição intermediária entre o monismo do AT e o dualismo persa e grego, classificando-o como
semi-dualista. Isso significa que Deus continua sendo soberano e o criador de tudo, porém não tem responsabilidade pelo mal no mundo, o qual teria origem no livre-arbítrio concedido para suas criações, sejam elas humanas ou celestes. O mal entrara a partir dos anjos por sua rebeldia e a partir dos homens através do
pecado. No AT, a palavra Diabo deve ser entendia dentro de uma visão monista. No NT, o termo indica um ser autônomo em relação a Deus e que a ele se opõe, expressando a visão dualista. O termo
Lúcifer não é um nome próprio em sua origem e significa “o que leva a luz”. Foi
São Jerônimo, no século IV providenciou a versão latina da Bíblia, que empregou o termo Lúcifer para traduzir a expressão hebraica que corresponde à “estrela da manha”, e “astro brilhante” ou “aurora” e “manha”. A partir de um dos textos de
Isaías (Is 14:12-15), o profeta refere-se a uma personagem histórica concreta, provavelmente o rei de
Babilônia, mas a hermenêutica do cristianismo dos pais da igreja tinha como uma de suas regras interpretar o Antigo Testamento em função do Novo Testamento e isso fazia com que muitos textos tivessem sua leitura espiritualizada. Mediado por Lúcifer, Satã se transformou no Diabo. Assim sendo, essa narrativa, além de retirar de Deus a responsabilidade pela criação do mal, reafirmava sua onipotência, conciliando monismo e dualismo. O cristianismo, nos seus séculos iniciais, cumpriu o papel de redefinir os a gentes sociais a serem demonizados. Já é possível identificar no Evangelho de
Mateus uma estratégia de demonização por parte do cristianismo. Em aproximadamente 80 d.C, conflitos sociais entre o cristianismo do final do século I e o judaísmo rabínico foram interpretados pelos evangelistas cristãos como uma batalha cósmica entre o bem e o mal. Já em meados do século II, os judeus deixam de ser inimigos sociais e políticos muito ameaçadores. Sendo assim, os romanos, em função de suas perseguições, passaram a ser identificados como tais. No século III, a prática do NT de demonizar os adversários políticos já estava incorporada ao cristianismo. Seja pela demonização de adversários políticos (universo extra-psíquico) ou pela demonização das próprias lutas pessoais (universo intra-psíquico) a luta contra o Diabo viria a se tornar uma prática bastante presente no cristianismo. Para ilustrar essas batalhas contra o Diabo no cristianismo monástico, a biografia de
Santo Antão, feita por
Santo Atanásio (ATANÁSIO, S. Vida e Conduta de Santo Antão. São Paulo: Paulus, 2002.), que viveu no final do século III e início do IV, é relevante. Atanásio relatou muitas vezes em que na tentativa de desviar Santo Antão da conduta cristã, o Diabo saiu perdedor, porém apenas afastava-se para depois se aproximar em novas batalhas ao longo de sua vida.